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Além da Raridade: A Jornada de Érica Fernanda

Os pacientes raros são verdadeiros guerreiros que enfrentam batalhas diárias contra condições de saúde incomuns. Contudo, qual adjetivo usar para descrever alguém que encara não uma, mas múltiplas condições crônicas? Esse é o caso da Érica Fernanda, que convive com três doenças raras: Púrpura Trombocitopênica Idiopática (PTI), Granulomatose com Poliangiite (GPA) e Febre Familiar do Mediterrâneo. Sua resiliência e determinação diante desses desafios impressionam, inspiram e fazem dela mais do que uma guerreira: uma heroína.


ÉRICA FERNANDA, 2024.


Érica, 43, desde criança interessava-se por biologia, estudava a matéria numa tentativa de compreender as próprias condições médicas raras, que se manifestaram em seu corpo aos 9 anos de idade. Diferente do habitual em casos clínicos raros, que geralmente levam-se anos até que se feche um diagnóstico, a PTI da Érica foi descoberta de imediato. Como tratamento, ela foi submetida a altas doses de corticóides — medicamentos cujas repercussões secundárias comuns são retenção de líquido e ganho de peso.


ÉRICA EM 1988, ANTES DE DESCOBRIR A PTI (PRIMEIRA FOTO). ÉRICA EM 1989, APÓS O DIAGNÓSTICO E O USO PROLONGADO DE CORTICÓIDES (SEGUNDA FOTO).


Os efeitos colaterais do fármaco, desencadearam outras questões em sua vivência infantil. Érica, foi vítima de bullying através de ataques gordofóbicos por parte das outras crianças. Além dos desafios que já enfrentava, com a rotina intensa de consultas, tratamentos e cirurgias (numa das quais teve o baço retirado), o fator auto-estima baixa entrou na equação para dificultar ainda mais sua vida como jovem mulher. Encontrou, então, a partir de 2014, nos alimentos, uma fuga da ansiedade e da síndrome do pânico e passou a consumir uma dieta desequilibrada.


ÉRICA ENTRE 2014-2017, QUANDO SOFREU COM A ANSIEDADE E A SÍNDROME DO PÂNICO.


Em 2017, Érica fez um movimento em prol de uma melhor qualidade de vida e se submeteu a uma cirurgia bariátrica. Nesse período, ela sentia muito desconforto respiratório ao fazer pequenos esforços, sentia dores devido à fibromialgia, tinha desenvolvido pré-diabetes e apneia do sono grau II. O procedimento foi um sucesso e ela não poderia estar mais feliz com a ideia de finalmente recuperar seu corpo dos efeitos colaterais dos corticóides e da ansiedade.



ÉRICA EM JANEIRO DE 2017, 4 MESES ANTES DA CIRURGIA BARIÁTRICA (PRIMEIRA FOTO). ÉRICA EM 2024, NO BAILE DE CARNAVAL (SEGUNDA FOTO).


Entretanto, um mês após a intervenção, Érica começou a sentir fortes dores abdominais e foi hospitalizada. Apesar disso, as endoscopias não apresentavam alterações — pelo contrário, seu sistema digestivo estava normal. Assim ela seguiu por algumas semanas, com dores e sem respostas, até que, de repente, Érica perdeu a visão. Ela foi encaminhada às pressas para a UTI do hospital de Recife, onde permaneceu pelos 52 dias subsequentes, sob gerenciamento e controle dos sintomas.


Foi constatado que ela teve um AVC, que culminou na perda da visão, da memória e de algumas faculdades motoras. Contudo, o grave acidente vascular cerebral não era a causa do estado de saúde de Érica, era apenas uma consequência de um quadro clínico muito mais complexo. Érica teve alta sem diagnóstico e continuou o tratamento dos sintomas por três meses, sendo acompanhada ambulatorialmente. Então, um possível diagnóstico surgiu, Granulomatose com Poliangeíte, e aconteceu o que ela mais temia: a medicação para aquela patologia era, justamente, o corticóide. 


Após 1 ano e 2 meses de tratamento com metotrexato e prednisona e nenhuma melhora, Érica optou por buscar outro médico. Em janeiro de 2019, ela refez todos os exames e iniciou um novo tratamento, dessa vez, bem sucedido — aos poucos ela voltou a enxergar, a se lembrar das pessoas e de si mesma, a recuperar algumas memórias, hábitos e a coordenação motora. Contudo, sua reabilitação não foi completa e ela ainda convive com algumas sequelas do AVC.



ÉRICA EM DEZEMBRO DE 2017, SEIS MESES APÓS O AVC.


Em agosto de 2021, mesmo com a PTI e a GPA sob controle, Érica voltou a sentir as fortes dores abdominais, mas os resultados dos exames eram os mesmos de 2017: nada constava. Com o tratamento dos sintomas, a dor amenizava mas nunca cessava, até que, em novembro de 2021, o médico de Érica participou de um curso em Portugal e conheceu um caso parecido com o dela. Imediatamente, entrou em contato com Érica solicitando um exame genético. Em janeiro de 2022, de volta ao Brasil, o médico de Érica analisou o resultado do exame e chegou ao terceiro diagnóstico raro: Febre Familiar do Mediterrâneo. 


Além das três patologias raras, a Érica lidou com o bullying, com a ansiedade, com a depressão, com o AVC e suas sequelas — além de diversos outros desafios vindos de diagnósticos menos graves, como um tumor benigno no ovário esquerdo e a síndrome do intestino irritável. Ela poderia ter se rendido às dificuldades do caminho, ter se entregado à autocomiseração e se isolado do mundo — ninguém julgaria fraqueza, inclusive, acharíamos reações normais vindas de alguém que carrega fardos tão pesados. Entretanto, provando que sua força pessoal também é rara, a Érica se formou em enfermagem em uma faculdade pública, se especializou na área, ajudou muitas pessoas através do seu trabalho, foi aprovada em um concorrido concurso para um cargo importante no Ministério do Meio Ambiente, mudou de estado para assumir a vaga e morou sozinha; a Érica tem amigos de longa data, teve namorados, viaja, vai a shows, cultua seu lado espiritual e adora socializar. Após o AVC, a Érica aposentou-se por invalidez, mas, apesar das limitações físicas, lutou contra a sensação de inservibilidade e passou a usar sua inteligência e seu tempo para se engajar em prol dos pacientes raros. Sua história de vida nos faz refletir sobre as questões mais cruciais da existência, como o sentido da vida, a morte, a determinação, a liberdade, a solidão, a conexão, o sofrimento e a redenção. E, de maneira mais intimista, a trajetória da Érica desperta em nós um olhar interno sobre a nossa própria percepção da vida e sobre a forma como desfrutamos essa experiência tão mágica e frágil.


ÉRICA EM 2007, COM AS AMIGAS DA FACULDADE DE ENFERMAGEM.



Abaixo, a Érica responde e detalha algumas questões em relação às suas condições médicas e a sua jornada. Leia e inspire-se por essa mulher que é uma fortaleza: 


1. Érica, você pode nos dizer quais síndromes raras você tem? 

Eu tenho PTI, GPA, Febre Familiar do Mediterrâneo. 


2. Você pode nos contar a história desde o início sobre o processo de descoberta das condições até o recebimento dos diagnósticos?  

Em 1989, comecei a apresentar manchas roxas nas pernas, mas, como era criança  (9 anos), minha mãe achava que eu era desatenta e batia nos diversos lugares; quando a Escola marcou a festa de carnaval, minha mãe decidiu não comprar fantasia e, sim, uma malha colorida. Ao voltar e tirar a roupa, meu tórax estava  repleto de manchinhas vermelhas, a princípio, consideradas alergia ao tecido; como  não saíram após uns 2 dias, fomos ao Pediatra que nos encaminhou ao Hemope, já  que minhas plaquetas estavam muito baixas.


ÉRICA EM 1989, COM A ROUPA DE CARNAVAL QUE REVELOU AS PETÉQUIAS.


Era sábado, o médico não viu  gravidade no quadro e pediu que voltássemos na segunda-feira, quando as  plaquetas já estavam em 8.000. A médica iniciou o tratamento, em casa, com altas  doses de corticoide e vitamina C, com retornos semanais, depois quinzenais,  mensais e assim sucessivamente. Após 2 anos, sem resultados satisfatórios, a  médica sugeriu a retirada do baço, mas, pela minha idade e pelo percentual de  sucesso do procedimento, meu pai disse que não autorizava, daí, fomos ao Hospital  Albert Einstein, em São Paulo, ouvir um especialista e ele não recomendou o  procedimento. Ao retornarmos, fomos à médica e contamos tudo e ela não quis  permanecer me acompanhando e encaminhou a uma colega. Foram 10 anos de  corticoide e, por fim, aos 19 anos, me submeti à cirurgia e, desde então, as  plaquetas não caíram mais.


Em 2017, fui submetida a uma cirurgia bariátrica e, esta foi um gatilho para ativação  da GPA (não sabia que tinha). A princípio (1 mês após), comecei a sentir dores  intensas no abdômen, fiz várias endoscopias que não apresentavam alterações, até  que, após a última, perdi a visão e fui transferida para um hospital em Recife  (capital), onde fui direto para UTI; no total, foram 52 dias de internação com alta sem  diagnóstico (só identificaram que tive um AVC, mas, ele foi consequência da doença  e, não a causa). Fiquei sendo acompanhada ambulatorialmente, realizando diversos  exames e, 3 meses depois, o diagnóstico foi realizado e iniciei o tratamento com  metotrexato e prednisona (1 ano e 2 meses), sem resultado. Em janeiro de 2019,  mudei de médico, ele refez todos os exames, me examinou do cabelo à ponta do pé  (desmamou o corticoide e iniciou a azatioprina por 2 anos) e foi quando comecei a  responder ao tratamento e, as sequelas, foram melhorando também.  Em agosto de 2021, voltei a sentir dores abdominais intensas, fiz vários exames e,  nada resolvia, apenas amenizava; em novembro, o médico foi fazer um curso em  Portugal, lá, viu um caso semelhante ao meu, entrou em contato comigo e pediu que  eu realizasse um exame genético. Quando ele regressou em janeiro de 2022, veio  com um novo diagnóstico que, tinha entre os sintomas, a dor abdominal que vinha  sentindo. Febre Familiar do Mediterrâneo era ela. Iniciamos o tratamento com  colchis, porém, precisou ser suspenso com 2 meses, pois as reações eram mais  incômodas que os sintomas e, até o momento, está controlada. 


3. Pode nos explicar um pouco sobre o que você sabe sobre a PTI, a GPA e a Febre Familiar do Mediterrâneo? 

Como eu tenho formação na área de saúde (Enfermeira), os médicos detalharam e  discutiram algumas decisões nos 2 últimos diagnósticos. A PTI é idiopática (de causa desconhecida), reduz, severamente, a quantidade de  plaquetas o que leva ao risco de hemorragia.  A GPA é uma vasculite autoimune, atinge, principalmente o sistema nervoso,  respiratório e renal. Os sintomas são inespecíficos e, cada paciente, apresenta uma  situação diferente.  E a Febre Familiar do Mediterrâneo é uma doença de origem genética, oriunda da  Europa. Se não tratada, pode levar ao aborto e infertilidade e insuficiência renal. 


4. Como você e sua família lidaram inicialmente com diagnósticos tão raros?  

No 1° diagnóstico, apesar de tentar disfarçar, meus pais sofreram muito e tinham um  cuidado, fora do comum comigo; a princípio, não entendia porque precisava ficar de  repouso se não sentia nada e, depois, sofri muito bullying, mas, não disse a  ninguém, guardei pra mim. No 2° diagnóstico, como eu havia perdido a memória, não sabia o que estava  acontecendo e a sensação era de medo contínuo; meus pais, já idosos,  preocupados com os sintomas/sequelas que eu enfrentava e, ao mesmo tempo,  contrariados por não poder cuidar de mim. No 3° diagnóstico, como não sentia nada além da dor, foi, apenas, mais uma.


ÉRICA E FAMÍLIA EM MARÇO DE 2009. DA ESQUERDA PARA DIREITA: SUA MÃE, SEU PAI E SEU IRMÃO MAIS NOVO.


5. Pode compartilhar um pouco sobre as consultas médicas e tratamentos que passou desde os diagnósticos? 

As consultas médicas, às vezes, nos contrariavam devido aos resultados dos exames.  Quando criança, chorava todas as vezes que se falava em voltar a tomar corticoide e, me senti aliviada após a cirurgia.  No segundo momento, passei 1 ano sem saber o que estava acontecendo e, em  seguida, ao começar a recuperar a memória, passei a questionar alguns  procedimentos. Após a troca do médico passei a me sentir mais segura e confiante  e, tive/tenho papel ativo no tratamento.  E, o último diagnóstico, de verdade, não me causou grandes transtornos; falava que  era mais um pra coleção.  


6. Como as condições raras impactaram a sua rotina?  

Na infância, não podia participar de várias brincadeiras, usar o parquinho da escola  e fazer educação física, então, me sentia um “ser estranho” e tive a autoestima  muito abalada. No diagnóstico da GPA, precisei ser aposentada por invalidez e isso não me fez  bem; eu tinha (às vezes, ainda tenho) a sensação de inutilidade, mas, comecei a me  engajar em alguns grupos de pacientes raros e isso tem me ajudado bastante. Inclusive,  esse ano, assumi o Fevereiro Raro aqui no município onde estou morando.  



ÉRICA EM 1990, COM A TURMA DO ENSINO FUNDAMENTAL | DA ESQUERDA PARA DIREITA: ELA É A TERCEIRA CRIANÇA DA PRIMEIRA FILA (PRIMEIRA FOTO). ÉRICA EM 1997, NA CONCLUSÃO DO ENSINO MÉDIO | DA ESQUERDA PARA DIREITA: ELA É A TERCEIRA DA ÚLTIMA FILA (SEGUNDA FOTO).


7. Quais são os desafios mais significativos que enfrenta? 

O maior desafio é não trabalhar, mas, alguns prazeres, como dançar, ainda, não  faço como antes e, não escrever/baixa coordenação motora para digitar e folhear  livros, também incomodam. 


8. Como foi sua adaptação com os desafios contínuos associados às condições raras? 

Como tive desafios, praticamente, a vida toda, aprendi a ressignificá-los. No  momento que percebo alguma limitação ou me é informada pela equipe que me  acompanha, fico umas 24h “digerindo” e, em seguida, digo a mim: “vamos lá, é só  mais um desafio” e sigo. 


9. Em um cenário tão raro, como foi a experiência em encontrar apoio na comunidade?  Houve grupos de apoio específicos ou redes de suporte? 

O meu apoio, sempre, foi minha família (pai, mãe, irmão) e alguns amigos que a vida  me presenteou. Em geral, eu ouvia “a bichinha”, “tá triste, neh?”, “você vai ficar boa”, tudo isso com  um olhar de pena. Só conheci alguns grupos, ano passado (2023), mas todos virtuais. 


10. Quais são suas esperanças e sonhos para o futuro?

Eu, apenas, vivo um dia de cada vez; procuro não fazer planos, pois, os que tinha,  foram ceifados. Mas, tenho esperança que, um dia, descubram tratamentos eficazes que levem à  cura das doenças raras.  


11. Que conselhos você daria a outras pessoas que possam estar enfrentando desafios  semelhantes? 

Tentar não se desesperar, se não tiverem segurança no profissional que os  acompanha, buscar outro, não interromper o tratamento sem orientação médica e  procurar uma atividade que lhe dê prazer, apesar das limitações. Mas, o maior e melhor conselho é NUNCA PERDER A FÉ! Se isso está nos  acontecendo, há um propósito que só entenderemos mais à frente. 



ÉRICA EM 2023, PRONTA PARA CURTR O SÃO JOÃO.

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